Ó Paisagem nua, Dor! - Monólogos Franjhunio: agosto 2009

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O Malvado deus - Episódio IV


O vôo do Airbus 350 da companhia Gol levava a lotação completa. Antes de iniciar a viagem, a aeromoça de bordo, uma loira de cabelo oxigenado onde as raízes pretas e crespas denunciavam a expiração do prazo de validade da progressiva, no meio do corredor, dirigiu-se a todos os passageiros:

«Atenção senhores passageiros, por favor… a viagem demorará cerca de duas horas, aterrizaremos no Aeroporto Internacional de Feira de Santana. Lá, na princesinha do sertão há muito sol e uma temperatura bastante agradável; agora, façam-me, ou melhor, façam-se um favor, ajoelhem-se e rezem duas ave-marias e um pai-nosso porque, apesar da experiência de vôo do nosso comandante, se alguma tragédia acontecer, o reino dos céus será o nosso destino.»
Entalado entre uma Testemunha de Jeová e Da Silva, Jesus de Deus desabafou:
«Não sei rezar, porra!»
«Mas finge que sabe, mexe os lábios e semicerra as pálpebras como se estivesses concentrado, assim ninguém notará a sua ignorância, entende?»
«Caralho!!! PqP!!!.»

Meia hora depois, o inspetor dava uma ligeira cotovelada no braço do seu ajudante.
«Você cuidou de tudo, né?»
Jesus sacou do bloco de apontamentos que consultou:
«Claro que sim… em Arraial D´juda estará Lúcifer, mais uns quantos amigos à nossa espera… e se levarmos a sério suas confidências, já não poderemos mais nos reunir na Arquidiocese de Salvador, porque o Ancebispo começa a andar desconfiado. Por outro lado, se somos descobertos, arriscamo-nos a ser assassinados pelos “secretas” da Opus Dei, na Bahia. A reunião foi alterada para o Rotary Club, uma instituição de todo o respeito dedicada à filantropia e onde nos sentiremos como se estivéssemos na nossa casa.»
«Que seja, então», replicou Da Silva e depois fechou os olhos e tentou adormecer.

Lúcifer era um tipo relativamente novo, vestia com gosto requintado e tinha uma linguagem fluente e simpática, até parecia um Mórmon. Na testa, indisfarçáveis, duas pequenas protuberâncias. Quando observou o olhar penetrante dos dois polícias, sorriu e justificou-se:
«Exato. São mesmo o que resta dos dois chifres que estavam implantados. Ainda fiz uma operação plástica mas, infelizmente, os cornos são como a barba, crescem e crescem, e tornam a crescer... acreditem-me ou não, todos os dias passo uma lima por cima. Enfim, é a minha sina!» Sorriu aberto e descontraído: «Fizeram boa viagem? Posso apresentar-lhes estes meus amigos que fazem questão de estarem presentes na nossa reunião? Todos têm contas a ajustar com o malvado deus.»

O inspetor observou os cinco personagens, esquisitíssimos que, entretanto, se aproximavam:
«Claro que pode, também nós ficaremos encantados por conhecê-los.»
Lúcifer voltou a sorrir, depois fez as apresentações:
«São Cipriano, famoso feiticeiro; Alessandro Cagliostro, ocultista e alquimista, estudou num seminário e depois num mosteiro beneditino, também se cansou de deus; Vlad Tepes, ou Vlad III, o Empalador, mais conhecido como Drácula; Paracelso, de seu verdadeiro nome Phillipus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, também alquimista e médico famoso; finalmente, Simão, o Mago ou o Gnóstico…»

Da Silva soltou uma sonora e irritante gargalhada:
«Que desgraça é essa, todos eles morreram há centenas de anos. Você está sacanagem comigo, é?»
Os olhos de Lúcifer faiscaram momentaneamente, só momentaneamente; depois, um sorriso doce animou-lhe as feições:
«Nada morre, meu caro, suponho que conhece a Lei da Conservação da Matéria, enunciada por um tal Lavoisier, um desgraçado que amava a monarquia, numa altura em que, em França, ser monárquico era um crime. Conhece? Então saberá que tudo se transforma, e que estes meus amigos, são apenas, tal como eu, representações, imagens, estereótipos... existimos sim, mas apenas nas suas cabeças, e só aí, entendem? Um poeta português escreveu uma vez: “Cada um é seus caminhos/ Onde Sancho vê moinhos/ D. Quixote vê gigantes/ Vê moinhos? São moinhos/ Vê gigantes? São gigantes.»
«Merda da filosofia de mesa de bar» pensou o inspetor, e depois deu uma palmada nas costas do outro:
«Claro que precisamos de vocês. O malvado deus anda matando ao léu, e temos de o apanhar. Vamos fazer a tal reunião?»
Todos riram em uníssono. Depois, conde Drácula, com voz fina, efeminada, explicou:
«Nunca perdoarei a deus, nunca! Era tão feliz quando estava com o meu preceptor…»
Lúcifer interrompeu-o para explicar:
«Drácula, realmente, tem razões de sobra para não gostar de deus. Adorava sugar sangue e outras coisas de rapazes virgens e inocentes. Deus enviou-o para um velho castelo na Romênia e deu-lhe uma esposa… Vlad III perdoou a deus por ter-lhe dado um reino; agora a esposa é que nunca o perdoará.»

***

Não perca o próximo episódio desta saga magnífica, onde nem tudo o que parece é. Os maus serão mesmo maus? E os bons, serão realmente bons? No próximo episódio tudo se esclarecerá, ou não, a ver vamos a disposição do narrador?!

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O Malvado deus - Episódio III


Da Silva de Deus atirou violentamente ao chão o relatório que o laboratório de polícia técnica lhe acabara de enviar.
«Já leste isto, Jesus?»
O agente acenou que não com a cabeça, e voltou a embrenhar-se no problema de palavras cruzadas que o jornal A Tarde trazia.
«Pois devias ler… o DNA da pena encontrada pertence mesmo a um pavão… só que a um pavão morto, mortíssimo, é uma pena com mais de cinco mil anos.»
«Que esperava o chefe? Achava que o arcanjo Gabriel tinha 20 anos? Ou trinta? O arcanjo é velho, chefe, velho pra caralho.»
«Não gosto quando você usa esses termos, meu caro, ainda mais aqui, no ambiente de trabalho… fica mal para um polícia, entende?»
Jesus riu. Gostava de chatear o superior e, sobretudo, gostava de o chatear de manhã.
«E em relação às impressões digitais do malvado deus, que foi conseguido?»
Da Silva continuava furioso. Antes de responder, aproximou-se da janela e observou a rua, cinzenta, porca, mas maravilhosa e plena de vida no centro de Itapuã.
«Temos milhares delas, mas, infelizmente, deus não tem cadastro… quer dizer, não temos o seu registro, nem a sua morada, nem a sua profissão, nem a sua idade, nada! Dele, só as histórias que os imbecis contam e estes crimes horríveis.»

Jesus fechou o jornal. Acabaria as palavras cruzadas lá mais para o fim da tarde, agora o trabalho chamava-o. Perguntou:
«E em relação aos marinheiros assassinados? Sabe-se mais alguma coisa?»
«Há uma nova pista que devemos explorar… os marujos eram todos homossexuais.»
Jesus assobiou longamente:
«O que significa que?» inquiriu.
«Vê onde pretendo chegar… deus matou em primeiro lugar um grupo de toxicodependentes, depois um grupo de homossexuais…ou seja, deus está a matar premeditadamente grupos específicos de indivíduos e não de forma aleatória como inicialmente pensei; se a minha idéia estiver correta, o próximo crime será executado contra alguém de quem as religiões, sobretudo a católica, não gostam. Começas a perceber?»
«Claro que percebo. Até podemos, antecipadamente, evitar que certas mortes aconteçam.»
«Fantástico Jesus, é isso mesmo! Se nossas premunições estiverem certas, estão em perigo os ateus, os comunistas, as prostitutas…»

O outro interrompeu:
«Os torcedores do Bahia…?!»
«Deixa de ser burro, Jesus.»
«Deus não gosta do Bahia, chefe, está provado, esse time não sai da 2ª divisão, e quando sai, volta pra 3ª…»
Da Silva continuava:
«As lésbicas, os ciganos, os pagodeiros, os chicleteiros…»
Jesus voltou a interromper:
«Eita porra, deus não gosta mesmo de ninguém.»

O inspetor estava mesmo entusiasmado. Acendeu um cigarro, abandonou a janela e fitou o seu subordinado.

«Há outra coisa que me tem deixado pensativo que é a imagem da senhora de Aparecida entre os corpos mutilados. Qual será a relação desta imagem, com os crimes?»
«Por que não marca um encontro?» perguntou o agente.
«Como?»
«A senhora de Aparecida, por esta altura, costuma estar ainda em Salvador, no Terreiro de Jesus. >
«Não me diga isso!?»
«Digo, sim, ora digo! Li esta notícia no Tribuna da Bahia desta semana.»
«Jesus, Jesus, todas as informações que temos relacionadas com este caso são importantes e deves comunicar-me imediatamente, por favor. Vá, vê lá se descobre o número de telefone dela e marca um encontro.»
«Um encontro com a senhora de Aparecida?»
«Sim, claro!»

As coisas começavam a avançar, pensava o inspetor. A comichão deixara de o apoquentar e, apanhar o malvado deus, começava agora a parecer-lhe tarefa mais fácil. Vindo da sala ao lado a voz do agente Jesus, sobressaltou-o:
«A dona Aparecida não pode atender-nos durante esta semana, pois diz que continua muito cansada, mas foi de uma simpatia extrema. Nos indicou a Lúcifer, irmão gêmeo de deus, que pode dar-nos algumas informações…»

«Lúcifer também está em Salvador? Isso é a terra do cão!»
«Infelizmente não! Está em Feira de Santana em comissão de serviço, mas podemos ter uma conversa franca com ele… o fulano é sócio honorário do Rotary Club Internacional.»

***

Não perca o próximo capítulo onde conhecerá o famoso Lúcifer e sua corte diabólica. Mas não só: novos e terríveis dramas irão, certamente, acontecer.