Ó Paisagem nua, Dor! - Monólogos Franjhunio: outubro 2008

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Cagüete é Cagüete


A figura do maldito dedo-duro não é uma desgraça apenas na vida dos bandidos. Se pararmos para pensar, ela está bem presente no mundo formal. E pior: impune.
(Defunto Cagüete - Bezerra da Silva)
Cagüete é mesmo um tremendo canalha
Nem morto não dá sossego
Chegou no inferno entregou o diabo
E lá no céu cagüetou São Pedro
E já disse que não adianta
Porque a onda dele era mesmo entregar
Quando o cagüete é um bom cagüete
Ele cagüeta em qualquer lugar


Já dizia o Mestre Bezerra (antes de virar evangélico e ficar esclerosado - não necessariamente nessa ordem): cagüete é a imagem do cão. Ser contraventor, fazer merda, roubar... Tudo isso é errado. Mas entregar os parceiros é o mais vergonhoso dos pecados. Nego fala que a pior coisa que pode acontecer a uma pessoa no mundo da bandidagem é o malandro ser estuprador e cair na prisão, que o cu do canalha vira uma verdeira Disneylândia. Ledo engano. O X9 nem chega na prisão. A expectativa de vida para um dedo-duro no submundo não passa de 48 horas, sendo que 46 são de sofrimento em um lento processo de tortura.
A figura do cagüete não fode só com a vida dos bandidos. Se pararmos para pensar, ela está bem presente no mundo formal. E pior: impune. Tem muita gente por aí que posa de cidadão respeitável, mas na verdade merece amanhecer com a boca cheia de formiga.
Todos os dias, no mundo todo, várias mega-corporações abrem as suas portas para receber em seus laboratórios "consumidores comuns". Eles vão lá oferecer seus serviços opinativos. Dizer qual é o melhor aroma de perfume, qual o melhor sabor de gelatina, qual o controle remoto mais funcional e até, pasmem, qual o barulho de motor mais agradável.
"Nós vamos demonstrar dois sons de motor para vocês. Por favor, anotem em seus formulários qual o que transmite a sensação de uma caminhonete utilitária mais robusta e confiável" - diz a funcionária da Ford, com sua prancheta pressionada contra fartos seios e vestida com um sensual jaleco branco que deixa transparecer suas voluptuosas curvas domadas por uma sexy lingerie rendada (foi mal, sempre viajo com mulheres de jaleco). Baseados na resposta dos 30 cidadãos lá presentes, os engenheiros da Ford desenvolverão um carro com um barulho de motor mais atraente para o consumidor. E cobrarão mais caro por isso.
O que esses 30 cidadãos respeitáveis estão fazendo? Nos cagüetando! Em troca de míseros trocados (ou pior, de brindes escrotos) eles vão até o quartel general dos inimigos e revelam as nossas maiores fraquezas. Foi assim que eles descobriam o quão importante é a textura da margarina, qual a quantidade de molho para que o Big Mac fique perfeito, que cerveja desce mais redondo... Por causa desses arrombados ficamos na mão do consumo desenfreado, da compra irracional, puramente instintiva. Uma minoria se vende e entrega os pontos fracos da maioria, nos levando todos a dívidas astronômicas no cartão de crédito.
A pior classe de dedo-duro são as malditas famílias que se deixam pesquisar pelo Ibope. Elas são as responsáveis pelo nosso calvário televisivo. Como é possível aceitar que um aparelho seja colocado nas TVs de suas casas para rastrear minuto a minuto o que está sendo assistido? Estes canalhas estão dando embasamento científico para os "Faustãos" e "TV Pinico" da vida continuarem a emporcalhar nossos cérebros. Porra, quer assistir a estas merdas? Tudo bem, todo mundo gosta. Mas não contem para ninguém, principalmente para os responsáveis pelas merdas! Não revelem para os inimigos essa nossa fraqueza! Que tipo de trairagem é essa? Nós somos irmãos!
Toda a nossa desgraça é culpa desses safados carentes que ficam com o dedo indicador tremendo quando alguma migalha de atenção lhes é despejada. Na escola já era assim. Aquele moleque mais escroto, que queria ficar amigo da professora para gozar de uma rebarba de poder, já entregava os esquemas da galera.
São canalhas confessos ou canalhas inconscientes, que caem nas armadilhas dos institutos de pesquisa. A última opção fornecida é sempre "não sabem / não opinaram". Assim muita gente acaba se forçando a responder direito só para não cair no saco de 2% de ignorantes que nem mesmo sabem dizer se o pão de forma fica melhor com casca ou sem casca. Pois anotem isso: os 2% que não sabem e não opinam não são nem um pouco manés. Eles é que são malandros, porque não cagüetam os irmãos.
E o filósofo corrobora o sambista: o melhor da liberdade de opinião é que ela inclui a opção de simplesmente não opinar.