Ó Paisagem nua, Dor! - Monólogos Franjhunio: Para o mundo nascer feliz...

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Para o mundo nascer feliz...


"Muito bem, pessoal, quem fala aqui é Deus. Espero que estejam achando as cadeiras confortáveis. O lugar está meio apertado mas estamos ampliando. Provavelmente mês que vem já poderemos mudar para o novo lugar, com mais espaço e mais cadeiras. Peço perdão aos que tiveram que ficar de pé.
Pois bem, sei que não estão entendendo nada, mas é o seguinte: depois de milhares de anos e bilhões de reclamações de que os homens nascem sem serem consultados, resolvemos mudar as coisas por aqui. Na verdade vocês fazem parte de um teste. Por isso não, não é todo mundo que está sendo questionado antes de nascer. Vocês foram selecionados segundo critério nenhum, pois não se pode classificar alguém que ainda não viveu, não é mesmo? Tá, desculpem a piadinha infame.
Mas vai ser assim: a ficha que receberam tem uma senha. Vocês serão chamados um a um. Não vai demorar nada, pois o tempo aqui não existe. Então não se preocupem, certo? Quando chamarem, sigam para a porta que está no fundo. Lá vocês serão recebidos e lerão o contrato da vida. Nele está descrito todos os riscos que vocês assumem ao escolherem nascer. É simples e o encarregado da apresentação explicará o resto. É bem simples, na verdade.
Quem está aqui e já optou por não querer nascer antes mesmo de ver o contrato, pode tomar o caminho da escada rolante. Por favor, não tenham vergonha dessa escolha. Aqui não há julgamentos. Por isso, sigam para lá caso queiram.
Agradeço a colaboração. Na mesa do centro há uma caixinha de sugestões. Qualquer comentário ou crítica, por favor, preencham a ficha, escrevam e coloquem na urna. Queremos impressões sobre a nova idéia para aperfeiçoarmos todo o processo. Nossos gerentes estão montando o projeto e sugestões nessa etapa são muito bem vindas. É isso. Muito obrigado pela colaboração."
Poucos foram para a escada rolante, cerca de uma dúzia pelo menos. Piscou o número "415" e o chamado dirigiu-se para a porta ao fundo. A sala era pequena, cheia de arquivos. As cadeiras eram novas, bastante confortáveis. O teto ainda não tinha reboco. Estranhou o cinzeiro na mesa.
- É só decoração, não se preocupe.
- Entendo.
- Muito bem, aqui está o contrato. Alguma pergunta?
- Não, vou ler aqui. As letras não são pequenas como eu imaginava.
- É que aqui somos justos. Em outros departamentos as coisas são diferentes. Você deve imaginar.
- Sim, tudo está muito claro. Pensei que o texto seria rebuscado como a Bíblia também.
- É, depois do cinzeiro essa é a segunda coisa que notam. É que, sabe como é, não foi escrito por homens e tal... Então fica mais fácil para fluir.
- É, faz sentido. Bom, então vou ler aqui.
- Certo.
- Não entendi a parte do amor.
- Tá, é simples. Assim, você não vai ficar sabendo bem o que é, pois como é uma expressão divina, os homens vão tatear alguma coisa, alguns mais, outros menos. Você vai sentir, não vai saber de onde vem, não vai dar para explicar, mas todo mundo vai sentir. O que o trecho que você leu quer dizer é que mesmo que isso te cause problemas, você já nasce ciente de que terá que lidar com isso. Principalmente no que se refere aos humanos do outro sexo, no seu caso, às mulheres.
- Sei.
- Então, na maioria das vezes você vai se apaixonar por elas, vai amar algumas mas elas não irão te corresponder.
- Poxa...
- Pois é, mas é assim. Eva e Adão, entende? Pois é. Algumas vão te sacanear e tal, aproveitar que você é um bucha e te empurrar algumas frutas duvidosas.
- Tá, entendi. Dolorido isso, hein?
- É, pois é. Por isso demos mais atenção à isso.
- Beleza. Vou continuar aqui.
- Tranquilo.
- Essa parte das DST. Não tem como nascer com imunidade?
- Foi mal, mas não dá. Esse item só entrou por pressão do Lucas, aquele... Bom, deixa pra lá. É que a gente quis alertar, mas é só por ser politicamente correto. A intenção foi só essa. Pois tem muita gente que nasce achando que nunca é com ele, que só acontece com os outros, aí pega e aparece chorando na TV para contar a história, falando bobagens.
- É, tá certo. E essa do trabalho? Quatro da manhã não é muito cedo?
- Sim, mas vira a folha, isso, essa, a 6479: essa tabela são só exemplos do horário no qual, dependendo do seu emprego, irão te chamar. Mas aí varia de empresa para empresa, de país para país.
- E já nascer chefe, não dá?
- Ei, amigo, desculpa: a gente aqui não dá três pedidos para cada um que for nascer. Até pensaram nisso, mas o mundo acabaria habitado por ricos caralhudos, cada qual com sua Patrícia Pillar, como o Ciro. Não é bem assim...
- Tá, tá. Calma. O lance do país, dá para falar mais.
- Então, como você não pode escolher o lugar onde nascer, tentamos equilibrar algumas coisas. Por isso, dependendo de onde você nasça nós vamos dar condições para que algumas coisas se equilibrem. Por exemplo, se você nascer em um país de terceiro mundo ou na África, terá mais condições de aperfeiçoar seu lado humano e trabalhador, poderá ter um lado sensível mais apurado e, dependendo dos meio de comunicação locais, poderá pensar que é mais feliz, que tudo dará certo no final e que é um cara simpático.
- Hmm.
- E se nascer em um país abastado, com muito dinheiro, sem problemas de saúde, previdência vitalícia e tal, esse lado mais humano não será tão desenvolvido. Seus governantes serão meio estúpidos, falarão algumas besteiras que farão rir todo o mundo, mas você não vai entender nada mesmo, pois não sabe o que é o restante do mundo, então isso não o afetará. Seus sentimentos serão frios, pouco apurados e sua sensibilidade para captar humores e entender as pessoas que vivem ao seu redor será próxima a de um Coala cego.
- Tá, de qualquer forma...
- Bom, amigo, isso é o mais próximo de justiça que conseguimos, certo? Tá vendo aquela pilha de papéis? Então, é complicado. Lembre-se que, antes de tudo, estamos tratando com homens. E aquela pilha é o resumo da vida dos pais de todos os selecionados que estão aqui. Por isso é complicado. Tentar pescar tudo e colocar em um contrato foi trabalho de preso. Espero que, ao invés de você falar tudo aqui, faça uso da urna que Ele muito bem apresentou e...
- Calma, meu. Calma. Eu entendi, eu entendi. Esqueça isso. Vou continuar aqui.
- Tá, desculpe. Isso tudo é estressante...
- Sei. Mas me diga, essa parte aqui de lavar a louça...
- O que tem?
- Tipo, é obrigatório?
- Sim. Mas e daí?
- Assim... Lavar a louça? Se eu sujar eu lavo?
- Não, aí pode variar. Mas você realmente se importou com isso? Taí, novidade. Vou até anotar isso. Qual teu número mesmo?
- 415. Mas e então? Não tem como escapar?
- Escapar do quê?
- De lavar a louça.
- Amigo, você está brincando comigo?
- Não. Eu não quero nascer para lavar a louça. Tipo, do que conversamos até agora tudo é passável. Mas lavar louça? Não é para mim...
- Caro, você não vai nascer para lavar louça. Mas só previmos aí que, em algumas circunstâncias, isso existe na vida dos homens.
- Espera lá: e se eu só conseguir um emprego de lavador de pratos? Para isso eu não quero nascer.
- Não seja drástico. Por favor, não sejá drástico.
- Como assim? Eu estou falando sério!
- Não eleve a voz ou serei obrigado a chamar o segurança. Entendo sua posição, mas lavar a louça pode ser, sim, uma de suas tarefas enquanto vivo.
- Se é assim, não assino.
- Isso é sério?
- Claro. Desisto. Obrigado pela atenção, mas me desculpe: onde já se viu? Lavar louça? Isso não é vida...
- Eu que agradeço. Pode ir para a escada rolante e...
Bateu a porta. Estava furioso. Foi até a escada. Ela estava parada.
- Ei, amigo, quebrou. Pode usar a escada de incêndio, que aqui vai demorar para arrumar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Quanta criatividade!!! Mas realmente, lavar prato é um martírio.