Ó Paisagem nua, Dor! - Monólogos Franjhunio: O Malvado deus

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O Malvado deus


Episódio
I


Todas as manhãs, ao levantar-se, o inspetor Da Silva de Deus enfiava-se no banheiro e por lá ficava durante mais de uma hora. Vício terrível, pois antes de fazer a barba e tomar banho, sentava-se no sanitário e lia uma ou duas páginas da Bíblia, que normalmente usava em substituição do papel higiênico. Era assim há muitos anos desde que, ao ler uma passagem da fecundação de Maria pelo espírito santo, sentira uma forte ereção. Desde então fechava os olhos e imaginava a virgem, seminua, uma virgem muito parecida com a Catherine Zeta-Jones, deitada na relva, pernas e lábios entreabertos, sussurrando, enquanto o espírito santo lhe roçava docemente os seios e o sexo.

Essa segunda-feira seria igual a tantas outras, não fora o telefonema inusitado do agente Jesus de Deus, comunicando-lhe que se deveria apresentar o mais rapidamente possível.

«Que houve?» perguntou enquanto abotoava as calças e se olhava ao espelho.
Do outro lado da linha, a voz metálica do agente, tinha uma entoação bastante grave:
«Temos três cadáveres à nossa espera… foram mortos com requintes de crueldade, acredite! “Querem que o senhor se encarregue da investigação, devido ao seu passado místico e ao fato de saber lidar com o sobrenatural…»
«Sobrenatural?!»
«Venha diretamente para o local do crime, depois perceberá! Conhece Mercado Deus é Bom, em Mussurunga?»
«Conheço! Estão lá os corpos?»
«Afirmativo! Traga um saco plástico, pois ao ver os mortos pode querer vomitar.»
«Ok, dentro de meia-hora estarei aí.»

Acendeu um cigarro, e entrou no Fiat Uno que acelerou sem piedade. O trânsito era insuportável àquela hora, na avenida Paralela «porque será que este rebanho de fdp não vai de transportes públicos para o trabalho?» pensou, e depois soltou um palavrão ao ver uma piriguete num carrão aos ziguezagues.
«Comprou a carteira, idiota? Aprende a dirigi, caralho?» gritou, quando ultrapassou, nem reparando no gesto obsceno com que ela, em resposta, o brindou.

O Mercado Deus é Bom ficava na zona mais sombria do bairro de Mussurunga, Mussu City como alguns chamam, exatamente no Setor H. Quando Da Silva de Deus chegou, já lá estavam alguns peritos e, uma barreira de proteção impedia que os “curiosos” se aproximassem. Os corpos, realmente, estavam bastante desfigurados. Alguém os retalhara barbaramente e depois, numa última demonstração de barbárie, lhes queimara os mamilos e o sexo.

«Quem são as vítimas?» perguntou.
O agente Jesus tirou um pequeno bloco de apontamentos do bolso e depois abanou a cabeça:
«Maconheiro… um deles, este, era também traficante… consumia e vendia… a sociedade não vai sentir a falta deles» terminou com um sorriso.
«Cê disse em algo sobrenatural, místico…!?»

Jesus voltou a sorrir… depois, com a cabeça, voltou a apontar os três corpos.
«Já os viu bem… quer dizer, já observou os corpos em pormenor?»
Da Silva debruçou-se sobre os cadáveres que começavam a exalar fedor.
«Está falando de…?» e depois verificou que, entre eles, havia uma pequena fotografia da senhora de Aparecida.

«Que porra é essa?»
Jesus de Deus continuava a exibir um sorriso sarcástico.
«E não é tudo chefe! Temos o depoimento de várias testemunhas… tudo gente ligada à religião, que afirmam ter sido convocadas por deus para este lugar, para assistirem à execução de pecadores e heréticos…»

«Onde estão essas testemunhas?»
«Anotamos tudo o que de importante tinham a dizer, e os mandamos embora. Com eles aqui isto era o fim do mundo… havia evangélicos, católicos, protestantes, até um praticante do hinduísmo … a conversa deles era a mesma… tinham sido convocados por deus para assistirem à matança…»

«E?!»
«Deus apareceu acompanhado pelo arcanjo Gabriel e, a acreditar no que dizem as testemunhas, este Gabriel usa roupas caras, tem o rosto azul e as suas asas são parecidas com as do pavão…»

«E?!» insistiu o inspetor.
«Parece que deus, antes de matar os desgraçados, se entreteve a sacanear com eles, a torturá-los e a contar-lhes piadas infames sobre o Céu e o Inferno e só depois os começou a retalhar com uma faca … quando algum deles tentava fugir, o arcanjo voava e trazia-o a espernear pelo ar. E é tudo.»

Aquilo não fazia sentido e Da Silva sabia-o. Contudo, no seu íntimo, qualquer coisa lhe indicava que havia alguma veracidade nas declarações do agente Jesus. Aquele caso, pressentia, ia dar-lhe dor de cabeça, até já começava a sentir alguma comichão nos testículos, o que significava que o que vinha a seguir não seria muito agradável. Voltou a observar os corpos e acendeu um cigarro.

«Suspeitas, Jesus, simplesmente suspeitas… você crê, deus vir até aqui e cometer uma crime tão horrível?»

«Desde que vi um porco andar de bicicleta, já acredito em tudo» respondeu Jesus. «O mundo está louco e, pelos vistos, o Céu também.»
Da Silva de Deus respirou fundo e enfiou as mãos nos bolsos… iria, claro, tentar desvendar o caso. Seria o que o malvado deus quisesse.

***

Não perca o próximo episódio.
Continuará o malvado deus e o seu fiel arcanjo a matarem impunemente? E o inspetor da Silva continuará com comichão nos testículos?


Por Franjhunio

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