Vida minha...

...são vinte duas horas e treze minutos, o portão eletrônico se abre com alguma dificuldade, o cordial boa noite, a resposta não dada, o arrastar do assoalho do carro no quebra-mola, a mossa na porta do carro, o carro velho estacionado na garagem, os três lances de escada, a porta, os sapatos jogados ao lado do sofá, a meia na máquina de lavar, os pés descalços, a latinha de cerveja na mão, o ventilador ligado ao máximo, o saco de salgadinho aberto, o remédio para dor de cabeça sempre às mãos, a mulher comendo um pedaço de pizza na cozinha, o computador ligado, o envelope com o extrato do cartão de crédito em cima da mesa, o comercial do carro mais vendido pela FIAT, o controle remoto na perna, o cachorro ladrando na área externa do condomínio, os filhos (dos outros) gritando pelos corredores externos, o aviso de recado na caixa postal soando celular, a mancha de suco de uva no sofá, a água do mini-aquário sujo, a vinheta com os créditos do final da novela, o comercial do hipermercado 24 horas, os restos de frango assado no fogão, os pratos sujos na pia, o porta-retrato, momentos felizes, o globo, a poeira na estante, a imagem da coruja, os macaquinhos (não vi, não ouvi, não falei), o quadro poeirado de moldura branca com pintura surrealista na parede verde, o DVD do Pink Floyd live at pompeli na prateleira para dvds, o diploma de filosofia amassado guardado numa pasta velha e transparente, o prefixo sonoro do jornal da noite, o remédio para combater a queda de cabelos, as manchetes da noite, a conta da luz e do telefone no imã da geladeira, os muitos valiosos livros na estante do quarto que nada dizem de importante e servem só pra quem não sabe lê, a chancela publicitária da empresa de automóveis, o editorial na voz do âncora rouco, o comercial do creme dental antitártaro, o comercial do remédio para combater a disfunção erétil, a cadeira de balanço do vovô que não tenho mas que imagino um dia ter, o destaque do dia em Brasília, a notícia de senadores votando secretamente, a repercussão no país, a vitória governista, a compra de votos, a distribuição de cargos, a revolta, o consolo, a falta de interesse, o “não é comigo não”, o bocejo, o cochilo, a mulher chamando para dormir, o sono, o descanso, o descaso, o fim...